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De museu a marcenaria, como um motociclista fez renascer a Fórmula Vee no Brasil

De museu a marcenaria, como um motociclista fez renascer a Fórmula Vee no Brasil

O engenheiro civil Roberto Zullino reviveu a categoria após desenhar
o projeto inicial em chão de oficina e agora prepara a terceira geração da FVee.

Por Fernando Santos

 

Um motociclista, um marceneiro, um museu e uma dívida paga com um fabricante de buggy. Foi assim, de forma inusitada e ousada, sem nenhum apoio oficial de montadoras ou patrocinadores, que a Fórmula Vee renasceu em 2011 e se mantém na ativa por quase dez anos, seu maior período ininterrupto de competições no Brasil.

As circunstâncias que levaram à retomada da categoria no país envolvem ainda a coragem e determinação de uma geração de amantes do automobilismo, dispostos a superar barreiras e as frequentes crises no automobilismo nacional.

Quando o engenheiro civil Roberto Zullino resolveu colocar a mão na massa para recriar a FVee, a partir de 2009, o Brasil vivia mais um período de seca nas pistas. As competições de monopostos praticamente haviam desaparecido no país, a maioria por questões financeiras, como a Fórmula Renault, Super Fórmula 2.0, Fórmula São Paulo e Fórmula Future-Fiat, além da Fórmula Ford, encerrada muito tempo antes, em 1996. Sobrevivia ainda uma ofegante F3, com preços exorbitantes e que servia apenas a um seleto grupo de jovens endinheirados.

Nesta época, o país ainda ostentava uma posição de honra no automobilismo mundial, com quatro pilotos na Fórmula 1: Felipe Massa (Ferrari), Nelsinho Piquet (Renault), Rubens Barrichello (Brawn) e Lucas di Grassi (piloto de testes da Renault). Mas a maré começava a mudar. Em 2009, o Brasil registrava sua última vitória na F1, com Rubinho no GP de Monza. Já são 11 anos de jejum, e hoje nenhum brasileiro no grid. É apenas uma mera coincidência pela falta de projetos de base?

 

Do blog para as pistas

A ideia de criar uma categoria de fórmula popular e que ajudasse na formação de jovens pilotos, principalmente aqueles saídos do kart, ganhava fôlego nos blogs especializados. As discussões nas redes sociais levaram a uma série de reuniões, muitas delas feitas em Interlagos, para encontrar uma saída para um automobilismo com fortes sinais de decadência.

Entre os participantes destes debates, estava um motociclista que vinha se destacando em provas de Classic Light com a réplica de um Porsche Spyder. Roberto Zullino havia sido campeão estadual na categoria que reunia carros como Puma e Alfa Romeo, mas também já vinha perdendo a sua graça, devido a alterações constantes no regulamento e pelo desinteresse dos competidores.

O curioso é como Zullino foi apresentado ao Spyder, abrindo o caminho para a sua entrada no automobilismo. Ele sempre fora um apaixonado por motos, tendo disputado diversas provas no início dos anos 1970 com as primeiras máquinas japonesas que chegaram ao país, como uma Yamaha TD1. Sua carreira como motociclista deu lugar aos estudos. Após se graduar em engenharia civil, ele fez mestrado na prestigiosa Universidade de Stanford, na Califórnia (EUA), e se afastou das pistas durante vários anos. Até o encontro com o acaso.

Em seu retorno, em 1994, Roberto Zullino assumiu a presidência da Tecelagem Parahyba, uma das maiores indústrias têxteis do país. Entre suas funções estava a negociação de dívidas. Um de seus clientes, além de comercializar os famosos cobertores da marca, tinha uma fábrica de buggy e aproveitava a linha de produção para montar réplicas de carros famosos. Um desses carros era um Porsche Spyder, que acabou sendo usado para quitar os pagamentos atrasados. Zullino restituiu o valor à tecelagem e ficou com o carro.

 

Roberto Zullino em prova com a réplica de um Porsche Spyder, semelhante ao que recebeu como pagamento de uma dívida, e que o levou para o automobilismo. (crédito: arquivo pessoal Roberto Zullino) e, na sequência, imagem de prova de motociclismo que disputou no início dos anos 1970 (crédito: arquivo pessoal Roberto Zullino).

 

 

Inspiração em corridas na terra

Sempre que ia para a pista, o engenheiro ouvia que não se tratava de um verdadeiro Porsche com sangue alemão, mas sim do “Buggy do Zullino”. Além de vencer nas pistas, o ex-motociclista também tomou a ponta nas discussões para transformar a ideia de uma nova categoria em realidade.

O projeto em torno de Zullino chamou a atenção de outro bugueiro. Régis Cava competia com os pequenos e divertidos carros feitos de tubos de metal nas provas em pistas de terra na região de Limeira e Piracicaba. Ao saber do interesse em criar uma nova categoria de fórmula, ele apareceu com uma solução: os seus amigos gaioleiros.

Corridas de carros eram comuns no interior paulista. Inclusive, em sua primeira fase, a Fórmula Vee realizou a prova de abertura da temporada de 1968 nas ruas do Parque São Quirino, em Campinas. Mas os pilotos da região gostavam mesmo era de correr na terra. As provas de gaiolas tornaram-se muito populares e levaram até a construção de um autódromo, hoje o ECPA (Esporte Clube Piracicabano de Automobilismo).

Dois gaioleiros que moravam próximo à pista de Piracicaba fizeram a primeira tentativa de montar um FVee. E da forma mais artesanal possível. Conhecidos como Abrão e Nilton, eles não tinham nenhum projeto, exceto a experiência com as tradicionais gaiolas, que eram veículos de dois lugares. Na época, o empresário Dito Gianetti, piloto e responsável pela construção do ECPA, já vinha desenvolvendo um carro-gaiola de apenas um assento.

 

Chão de cimento e giz escolar

A Fórmula Vee já existia há mais de 40 anos, desde sua criação nos EUA, em 1959. Ainda era popular em vários países. Havia, portanto, muitos projetos disponíveis a serem copiados ou tidos como referência. De acordo com Zullino, um modelo inglês chegou a ser avaliado, mas o custo do projeto era excessivo e o carro tinha dimensões reduzidas, apenas apropriado para garotos recém-saídos do kart. Não servia para os veteranos, com seus corpos menos (ou nada) atléticos, que queriam ter a experiência de competir com um monoposto.

Os dois gaioleiros começaram a construir um FVee no chão da oficina. Foi rabiscando o cimento com giz de lousa escolar que surgiu o primeiro projeto da nova geração da Fórmula Vee no Brasil. Isso, numa época em que profissionais usam modernos e poderosos softwares de desenho industrial, ainda mais no desenvolvimento de carros de competição. E não apenas na multimilionária Fórmula 1, maior referência em tecnologia no automobilismo. Não é difícil imaginar que o “projeto caipira” estava destinado ao fracasso.

A fabricação contou com os mesmos tubos usados para fazer os carros de gaiola. Eram muito maiores e mais pesados que o necessário. Transformaram o que deveria ser um FVee num tanque de guerra, como foi chamado. Roberto Zullino percebeu logo o problema e pediu ajuda a um conhecido, o professor Enriconi, que desenvolvia o projeto de um fórmula com alunos universitários em Curitiba. Os tubos então passaram de inacreditáveis 3,5 mm de espessura para 1,5 mm, com exceção do Santo Antônio e do arco da direção, por questão de segurança. Mesmo assim, o projeto não avançou e acabou “congelado”.

 

Os gaioleiros Abrão e Nilton com o "projeto" inicial do FVee desenhado no chão da oficina, próximo a Piracicaba (crédito: arquivo pessoal Roberto Zullino). Na sequência, a imagem do engenheiro Roberto Zullino avaliando o primeiro chassi de um FVee fabricado no interior paulista (crédito: arquivo pessoal Roberto Zullino). 

 

 

Chassi tubular nascido em fábrica de móveis de madeira

Mas os dois “projetistas-de-chão-de-oficina” não eram os únicos gaioleiros interessados na volta da Fórmula Vee. Eles viviam numa região próspera e rica em razão da produção de açúcar, cenário primordial para sustentar a produção de carros tubulares. Os canaviais exigem uma infraestrutura para garantir a manutenção das usinas, o que gerou a criação de um forte polo da indústria metalúrgica, principalmente em Piracicaba. E a FVee ganhou novo fôlego com outros dois entusiastas da região pelo projeto: Silvio Novembre e Chico Crivelari.

Novembre era piloto, corria de kart e outras provas regionais, e Crivelari tinha sua própria oficina para fornecer o material para a montagem do chassi. Eles contaram ainda com outro apoio fundamental e uma solução inusitada: o projetista Eduardo Monis, que havia desenvolvido o Fórmula Speed (um kart encorpado), e o marceneiro Francisco Zurk. Sim, um marceneiro!

Da oficina de gaiolas a nova Fómula Vee encontrou numa marcenaria seu inusitado destino final. Zullino comandou o projeto; Crivela garantiu a matéria-prima e a fabricação do protótipo; Monis aperfeiçoou o desenho original; e Zurk teve a sacada de cortar e dobrar os tubos a laser e depois soldar e montar o chassi em seu galpão, antes exclusivo para a produção de móveis de madeira.

Quase dois anos depois das conversas pela internet, reuniões nos corredores de Interlagos e desenhos feitos no chão de cimento, nasceu o chassi Naja. O nome de uma cobra pegou por se tratar de um carro leve, rápido e arisco. A ideia de reviver o motor do Fusca 1200 nem foi cogitada e logo optou-se pela versão 1.600, além de componentes de Kombi e Brasília, abundantes no mercado e com preços acessíveis.

O carro seguiu o mesmo princípio que deu origem à Fórmula Vee em todo o mundo: mecânica Volkswagen, originalidade de peças e baixo custo de produção e manutenção. O kit do chassi (sem motor, câmbio, suspensão e carenagem) custava R$ 11.900 e podia ser parcelado em três vezes. A promoção e divulgação eram feitas em páginas na internet. Ao contrário do que ocorreu nos anos 1960, desta vez não houve nenhuma participação da VW.

 

Chassis produzidos na marcenaria de Francisco Zurk, em Piracicaba (crédito: arquivo pessoal Roberto Zullino) e, na sequência, o logo do chassi Naja, idealizado pelo ilustrador Ararê Novaes. 

 

 

De volta para o futuro

O primeiro FVee da nova geração foi financiado por Paulo Trevisan. Empresário gaúcho e ex-piloto de diversas categorias, ele mantém um dos maiores acervos de carros antigos do país, no Museu do Automobilismo Brasileiro, em Passo Fundo (RS). O modelo inicial, chassi 001, está em exposição ao lado de outros 124 veículos, sendo no total 28 fórmulas.

Trevisan foi um dos maiores incentivadores da retomada da Fórmula Vee. Ele acompanhou de perto a era de ouro nos anos 1960. A ideia de trazer de volta uma categoria com carros de mesma motorização e de custo baixo era vista como uma maneira de resgatar o automobilismo brasileiro.

Antes de receber o primeiro carro, Trevisan convidou Roberto Zullino para conhecer e pilotar algumas de suas preciosidades. Entre elas estava o que é considerado o único Fitti-Vê original que restou. Zullino pôde dirigir o carro que fez sucesso nas mãos de Emerson e Wilsinho Fittipaldi, o que o motivou ainda mais a levar adiante o processo de reviver a categoria.

O velho Fitti-Vê foi para a pista. Ainda se mostrava rápido e quase se equiparava, em trechos do autódromo de Guaporé, a carros mais potentes como Aldee, Omega, Spron e até o original F-Ford de Rubens Barrichello. O modelo antigo tinha a vantagem de ser evidentemente mais barato, menos sofisticado e muito mais divertido, pois obrigava o piloto a se esforçar para aproveitar os 40 HPs do motor 1.200.

Paulo Trevisan contribuiu ainda ao apresentar a nova FVee para o programa Auto Esporte, da TV Globo, que pode ser revisto em https://www.youtube.com/watch?v=QxorYJgrvbI&t=2s. A reportagem, além de atrair pilotos e outros interessados, ajudou a firmar acordos comerciais. Um dos mais importantes foi com a Indústria Rima, que cedeu blocos de motores.

 

Na imagem da esquerda, o primeiro FVee fabricado na retomada da categoria, em 2011, que está em exposição no Museu do Automobilismo Brasileiro, em Passo Fundo/RS (crédito: arquivo Museu do Automobilismo Brasileiro). Na sequência, a imagem do Fitti-Vê original no Museu do Automobilismo Brasileiro, em teste com Roberto Zullino (crédito: arquivo pessoal Roberto Zullino). 

 

O Fitti-Vê original, da década de 1960, e o primeiro modelo da retomada da categoria, em 2011 (crédito: arquivo Museu do Automobilismo Brasileiro). 

 

 

 

Produção em série e nova crise

Os primeiros carros passaram por diversos testes e acertos. Um dos maiores problemas foi a dimensão do cock-pit. No primeiro experimento, o piloto ficou entalado e quase foi preciso serrar a lateral para tirá-lo de dentro. O ajuste foi de apenas 6 centímetros na largura dos chassis na altura dos ombros, que fez toda a diferença. Hoje, um FVee nacional comporta pilotos de até 1,95 m de altura e que podem pesar por volta de 90 a 100 kg.

No lote inicial, foram fabricados cerca de 30 carros. Com o tempo, os preparadores aperfeiçoaram o projeto. Em dois anos, os pilotos já haviam reduzido em quase 20 segundos o tempo por volta em Interlagos. Muitas peças, principalmente o velho motor do Fusca a ar, já não davam conta do recado e novas melhorias eram necessárias.

A busca por alternativas técnicas e intrigas pessoais levaram à cisão da Fórmula Vee. Da divisão, surgiu em 2013 a Fórmula 1600, que logo em seguida trocou o motor VW pelo Ford. A FVee, a partir de iniciativa do piloto Kenner Garcia e de seu preparador Gustavo Acosta, ambos de Uberlândia (MG), também se modernizou. Eles começaram a testar o motor 1.4 do Fox até chegarem ao propulsor utilizado nos dias de hoje, também do Fox mas de 1600 cc e refrigerado a água.

Ao todo, foram construídos cerca de 100 carros com o chassi Naja em quase dez anos, que continuam em produção e nas pistas até hoje. Este é disparado o maior período da Fórmula Vee no Brasil, que em sua primeira fase durou apenas quatro anos, de 1967 a 1970. Depois, com forte apoio da VW, foi criada a Fórmula V 1300 e a Super V (1974-1980), que revelou, entre outros, Nelson Piquet.

 

 

Primeiro teste de pista do Fórmula Vee, em 2011, no ECPA, em Piracicaba, ainda sem a carenagem (crédito: arquivo pessoal, Roberto Zullino). 

 

 

A terceira geração da FVee

Roberto Zullino segue agora como consultor da FVee, responsável entre outras coisas pelos regulamentos técnico e desportivo. Ele costuma ir a Interlagos para acompanhar as provas válidas pelo Campeonato Paulista na direção de seu renovado Porsche Spyder, semelhante àquele que recebeu como pagamento de dívida, ou pilotando a sua moto BMW.

A gestão esportiva e operacional passou para a F/Promo Racing, do empresário Flávio Menezes. A mudança marcou o início da terceira geração da história da categoria, que voltou a ter a participação de Wilson Fittipaldi e também do projetista Ricardo Divila, que contribuiu com as inovações até a sua morte, em abril deste ano.

Os carros ganharam nova suspensão traseira independente, câmbio de cinco marchas do Gol e modernos comandos eletrônicos de injeção, monitorados por telemetria via GPS. O novo chassi foi chamado de Naja FD-01D, com as iniciais de Wilsinho, Divila e do renomado mecânico Darcy de Medeiros, que também havia trabalhado na FVee até a sua morte, em 2017.

Entre os novos desafios de Zullino está a construção de um Super Vee que começou a ser projetado por Ricardo Divila. Esse novo carro incorpora soluções modernas no projeto do chassi, um misto de tubos com chapas de aço duplas recheadas de poliuretano, suspensão de triângulos na dianteira e multilink na traseira.

Assim, os carros que tiveram como embrião um buggy, começaram a ser desenhados no chão de uma oficina por gaioleiros e nasceram numa marcenaria resistem nas pistas por quase uma década. É um período muito maior do que outras categorias de fórmula que tiveram altíssimos investimentos bancados por grandes montadoras e fortes patrocinadores, e acabaram fechando as portas. E mesmo diante de circunstâncias improváveis, a Fórmula Vee se consolida, o que só pode ser explicado pela paixão de verdadeiros amantes do automobilismo.

 

 

 Flávio Menezes (à esq.), diretor da FVee Brasil, conversa com Roberto Zullino durante prova em Interlagos (crédito: Claudio Larangeira). 

 

 

Ricardo Divila, Darcy de Medeiros e Wilsinho Fittipaldi durante o desenvolvimento do novo chassi Naja FD-01D, em 2017 (crédito: Claudio Larangeira). 

 

 

 

 

 

 


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