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A mulher que ultrapassou o preconceito e venceu a primeira prova de Fórmula Vee na Inglaterra

A mulher que ultrapassou o preconceito e venceu a primeira prova de Fórmula Vee na Inglaterra

Jennifer Nadin ganhou a corrida inaugural em 1967 em meio a comentários de que 
teria sido 
uma jogada de marketing por se tratar de uma garota ao volante.
Hoje, ela admite que foi “ingênua” e que mulheres passam por “humilhação” no esporte.

Por Fernando Santos

 

Há 53 anos, uma mulher fazia história nas pistas. Em 1967, Jennifer Nadin venceu a corrida inaugural da Fórmula Vee na Inglaterra, no autódromo de Silverstone. Esta é considerada ainda a primeira vitória de uma mulher em carro de fórmula no automobilismo mundial.

Mas o resultado foi cercado por comentários de que teria sido uma armação, uma jogada de marketing utilizando uma garota bonita, de cabelos loiros e sempre sorridente, para atrair a atenção da mídia e valorizar a categoria que acabara de chegar ao país.

Jenny Nadin, como era conhecida, é hoje uma senhora de 77 anos que mora num vilarejo na região central da Inglaterra, no condado de Northamptonshire, a 120 km de Londres. Ela vive com o marido, frequenta a paróquia local, tem um cão, cuida do jardim e gosta de ler e saborear um bom vinho branco.

Jennifer Nadin com o marido, o neozelandês Tony Ornstien, no Natal de 2019, na Nova Zelândia, onde estão confinados em razão da pandemia do novo coronavírus. Na sequência, o mural no escritório de sua casa, na Inglaterra, com recorte de jornal mostrando acidente na Fórmula Vee (crédito das imagens: arquivo pessoal Jennifer Nadin).  

 

Quase meio século depois, adotou uma nova compreensão daquele momento histórico: ela reconhece que teve uma atitude “ingênua” diante de uma evidente ação promocional e considera que mulheres passam constantemente por “humilhação” no automobilismo, esporte que chama de “machista”. “Os homens não admitem ser derrotados por uma mulher”, diz.

A declaração foi dada aqui, ao site da Fórmula Vee Brasil, direto da pequena cidade de Lake Rotorua, na Nova Zelândia, onde ela está confinada na casa de seu marido, o neozelandês Tony Ornstien. Eles viajaram no final do ano passado para fugir do rigoroso inverno britânico e agora estão em isolamento social há vários meses, em razão da pandemia do novo coronavírus, à espera de liberação para voltar à Inglaterra.

Nesta entrevista, Jennifer Nadin fala também sobre como conheceu e se tornou amiga de Emerson Fittipaldi; da companhia de outra famosa piloto inglesa que chegou à Fórmula 1; e deixa um recado para jovens que querem iniciar a carreira no automobilismo.

 

Paixão por carros e cavalos

Armação ou não, a vitória histórica de Jennifer Nadin na Fórmula Vee faz parte da geração, como costuma-se dizer, de uma família com gasolina nas veias. Nascida em Leeds, no norte da Inglaterra, ela começou a competir no automobilismo com apenas 12 anos. Foi quando ganhou um MG Midget de seu pai, que fora piloto de competições com um Bugatti até antes da Segunda Guerra Mundial.

Além de carros de corrida, a então adolescente Jenny gostava também de cavalos, o que a ajudou decisivamente em sua carreira nas pistas. Ela logo foi apresentada e conheceu outra amante de boas cavalgadas: Pat Moss, uma das maiores campeãs de rali da história do automobilismo inglês e irmã de Stirling Moss, o famoso piloto inglês de F1 que morreu em abril deste ano.

Juntas, Jenny e Pat passaram a competir em várias provas de rali com carros como Ford e Lotus Cortina. Elas tiveram altos e baixos, como a vitória na Coupe des Dames e um acidente no rali Spa-Sofia-Liege. Na ocasião, o marido da famosa corredora inglesa, Eric Carlsson, aconselhou que já era hora de Jennifer deixar de ser copiloto e assumir o controle na direção.

O conselho foi aceito e Jenny comprou um 1275 Mini Couper S para participar do British Motoring News Championship, em 1964. Ela foi a única mulher a vencer uma das etapas e começou a despertar a atenção de grandes montadoras, como a Volkswagen, e da imprensa, principalmente do jornalista Nick Brittan, também piloto.

À esquerda, Jenny Nadin (71), Niki Britain (64) e Mike Haysey (72) no grid de largada para prova da FVee em Silverstone, em 1967. À direita, imagem de Jenny Nadin (71) no grid de prova da FVee em Silvertone, em 1967 (crédito das imagens: reprodução Facebook da Formula Vee UK.  

 

O bom desempenho em estradas secundárias no interior da Inglaterra levou Jennifer Nadin a receber o convite de Nick Brittan e da VW para testar um carro que acabara de chegar ao país: o Fórmula Vee. O teste foi em Brands Hatch.

Nick passou horas comigo, ensinando técnicas de pilotagem, mostrando o traçado da pista, etc. E ele se tornou também meu empresário, apesar de que não passava pela minha cabeça ser uma piloto de corridas deste nível até então.

 

A vitória polêmica

Criada nos EUA pelo americano Hubert L. Brundage no final dos anos 1950, a Fórmula Vee chegou à Europa em 1965, pela Alemanha. A Volkswagen importou os carros construídos com sua própria mecânica, que por ser simples e barata logo fez expandir a categoria pelo continente, desembarcando na Inglaterra em meio a uma disputa de montadoras.

Junto com os novos bólidos VW acabara de ser criada também no país a Fórmula Ford, que teve sua primeira prova realizada apenas duas semanas antes da estreia da FVee. Assim, havia claramente uma disputa comercial e esportiva no cenário automobilístico inglês.

Jennifer Nadin acabou sendo uma peça chave nesta briga entre Volkswagen e Ford, manipulada pelo jornalista Nick Brittan, que buscou ao máximo explorar a oportunidade de ter uma mulher na pista para chamar a atenção da mídia. Além de ser uma boa piloto, ela também se destacava pela beleza, com seus volumosos cabelos loiros e um sorriso cativante. Tudo que um jornal ou revista da época gostaria de mostrar.

O portal britânico Formula Vee Centre (www.veecentre.com) descreve assim a prova inaugural da categoria no país:

“A primeira corrida de FVee, em Silverstone, foi vencida por Jenny Nadin, apesar de o famoso jornalista Nick Brittan ter liderado a prova até a última volta, quando rodou.

Segundo rumores, a vitória foi orquestrada pela VW, que tinha contrato com os dois pilotos, e haveria uma publicidade maior no caso do triunfo de uma mulher. Nick Brittan ficou com o título ao final das 12 etapas do campeonato (Nadin foi a vice-campeã) e acabou escolhido para representar a Grã-Bretanha no Campeonato Europeu da Zona Oeste, o embrião da VW para criar um campeonato mundial de FVee.”

 

Ainda de acordo com o portal inglês, o piloto-jornalista recebia passagens aéreas (um luxo na época) e tinha um motorhome da VW à sua disposição em cada prova na Europa continental. Ele também acabou sendo indicado para disputar uma famosa prova de FVee antes do GP de Mônaco de F1, em 1967. Prova na qual ele ficou marcado por um espetacular acidente logo na primeira curva, após seu carro decolar sobre outros veículos nas ruas do principado.

O espetacular acidente com o piloto e jornalista inglês Nick Brittan, em prova da Fórmula Vee em Mônaco, em 1967, na preliminar da F1 (crédito: The Chicane website). Na sequência, Jenny Nadin na época como piloto (data não especificada). Crédito: reprodução Facebook Motorsportsfriends.

 

Curioso também foi o papel de Brittan para estimular a concorrência entre Volkswagen e Ford. Ele foi um dos responsáveis também pela implantação da Fórmula Ford na Inglaterra. Entre vários livros que publicou, está “The Formula Ford Book”, lançado em 1977. Ele também se notabilizou em provas de turismo e como piloto e organizador de ralis de longa distância, como o Londres-Sidney. Chegou até mesmo à Fórmula 1, como empresário do piloto francês Patrick Depailler. Nick Brittan morreu em 2006, na Austrália, em circunstâncias pouco esclarecedoras na época, com raros registros, entre eles o de suicídio.

 

Manobra e favorecimento da VW

A versão de um resultado previamente combinado é compartilhada também por outro integrante da equipe oficial da VW na prova inaugural da FVee na Inglaterra. Mike Haysey largou ao lado de Jenny Nadin e Nick Brittan em Silverstone.  Os três já competiam havia um ano no “Team VW Great Britain” em provas de turismo.

Em depoimento prestado à Fórmula Vee Brasil, Mike Haysey descreve assim aquela prova histórica:

“A primeira corrida da FVee, em Silverstone, foi uma surpresa, com um resultado inesperado para mim e outros competidores. Ninguém na equipe foi avisado, antes ou depois da prova, que o resultado havia sido combinado. Na minha opinião, Nick e Jenny tinham carros que receberam uma preparação diferenciada, definida pela alta direção de engenheiros da VW na Alemanha. Isso porque eu fiquei muito surpreso com a velocidade dos dois no treino classificatório. Acredito que Fred Matthews, o chefe da equipe VW, e Nick Brittan tenham feito um arranjo para favorecer a Jenny e ganhar maior publicidade. E isso funcionou.”

Mike Haysey terminou a temporada inaugural da FVee inglesa em terceiro lugar. Além de provas de Turismo, ele também competiu e chegou a ter o seu próprio time na Fórmula 3, onde chamou a atenção por contar com patrocinadores nada usuais, como uma casa de striptease e uma revista masculina. Nos últimos anos, ele tem se dedicado a trabalhar na equipe de kart de seu filho, a MHA Motorsports.

Mike Haysey conversa com integrantes da equipe VW de FVee em prova na Inglaterra. Na sequência, o piloto inglês Mike Haysey, que fazia parte da equipe VW na FVee inglesa ao lado de Jenny Nadin e Nick Brittan. Crédito das imagens: Formula Vee UK.

 

 

Uma nova visão da história

Marmelada, jogada promocional? É assim que Jennifer Nadin descreve aquele momento histórico da chegada da Fórmula Vee à Inglaterra, quando tinha 24 anos:

A primeira corrida de FVee em Silverstone foi nervosa, uma tortura! Eu consegui largar na pole-position, mas nunca havia participado de uma largada com carros lado a lado. E o carro ao meu lado saiu lento, e também acabei retardando a largada. Cheguei a assumir o segundo lugar até que, na última volta, vi o Nick rodar. Eu não podia acreditar quando venci a prova! Estava realmente eufórica.

Jenny Nadin recebe homenagem em prova de carros antigos realizada nos anos 1980 (crédito:  reprodução Facebook Motorsportsfriends). Na sequência, a premiação final da temporada de 1967 da Fórmula Vee inglesa: Jenny Nadin (vice) com os pilotos Nick Brittan (campeão, no carro) e Mike Haysey (terceiro colocado). Crédito: reprodução Facebook Formula Vee UK.

 

Mais de 50 anos depois, amadurecida por muitas experiências no automobilismo e na vida, ela analisa desta forma a situação:

Se foi realmente uma vitória orquestrada pela Volkswagen, eu era talvez muito ingênua na época, nunca acreditei nisso. Hoje, pensando bem, sim, as montadoras irão usar garotas e mulheres apenas por publicidade. Claro, eu acho isso tão humilhante, mas sempre foi assim.

Em sua reflexão do passado, Jennifer Nadin lembra ainda como sua participação naquela prova histórica da FVee na Inglaterra teve um caráter discriminatório:

Na minha opinião, o automobilismo era e continua sendo um esporte extremamente machista. Certamente por isso que o Nick colocou o desenho de lábios vermelhos no bico do meu carro. Mas tudo isso acabou me ajudando em meu primeiro ano na Fórmula Vee.

E completa :

Os homens não admitem serem derrotados por uma mulher! Anos mais tarde, o diretor da Ford na Grã-Bretanha, Stuart Turner, me contou o seguinte. Ele falou que preferiria colocar a Miss Mundo no paddock do GP de F1 em Brands Hatch, para sair em destaque na cobertura dos jornais pelo mundo todo, do que me oferecer um Escort para participar de um rali pelo país. Segundo ele, mesmo que eu ganhasse uma prova, não teria a mesma repercussão da Miss Mundo no seu paddock!

A avaliação de Jennifer Nadin reforça o cenário preconceituoso em relação às mulheres no automobilismo desde aquela época. Como aconteceu com a italiana Maria Teresa de Filippis, a primeira a correr na F1, em 1958. Após participar de três provas, ela foi barrada no GP da França pelo diretor de prova, Toto Roche, com o seguinte argumento: “Uma jovem tão bonita como esta não deve usar nenhum capacete a não ser aquele para secar os cabelos”. De Filippis considerou anos mais tarde que este foi o momento mais triste de sua carreira e que teve vontade de “esmurrar” o dirigente francês.

 

Amizade com Emerson Fittipaldi

A Inglaterra sempre foi considerada o centro do automobilismo mundial, e não era diferente nos anos 1960. Em meio a todo o glamour provocado pelas corridas e pelo burburinho em torno da vitória histórica na FVee, e não por acaso, Jennifer Nadin conheceu um dos maiores pilotos brasileiros:

Como costumamos dizer na Inglaterra, este é um mundo pequeno... Eu conheci Emerson Fittipaldi em 1969. Eu tinha uma boa amizade com ele e a Maria Helena (sua primeira mulher). Emerson corria na Fórmula 2 junto com meu primeiro marido, Graham Birrell. Muitos pilotos daquela época saíram da Fórmula Vee, por isso eu me sinto privilegiada por ter estado entre eles. É até difícil acreditar que já faz tanto tempo!

Por uma coincidência histórica, Emerson iniciou sua carreira no automobilismo também com a Fórmula Vee, disputada pela primeira vez no Brasil em 1967. Ele competiu com o Fitti-Vê, construído pelo seu irmão, Wilsinho Fittipaldi. Emerson ganhou o título nacional na temporada inaugural e depois seguiu para a Europa, até chegar à F1 e se tornar bicampeão mundial.

Anos depois de conhecer a família Fittipaldi, Jennifer Nadin encontrou outro piloto brasileiro: “Durante dois anos, eu trabalhei com a Honda no CRX Racing Series, na qual o Roberto Moreno venceu uma prova de celebridades, provavelmente em 1988, com um Honda muito mal preparado em Zandvoort (Holanda).

 

A vida após a FVee

Assim como na sua vida fora das pistas, o casamento com a Fórmula Vee não foi um mar de rosas, como se desenhou após a sua vitória na prova inaugural em Silverstone. Logo depois, ela sofreu um acidente espetacular, retratado no recorte de um jornal inglês que está no centro do mural de fotos colocado na parede do escritório de sua casa. Apesar de fazer história na FVee, ela diz que nunca teve a pretensão de seguir carreira em carros de fórmula, muito menos de chegar à F1.

Não sabia que eu tinha sido a primeira mulher a vencer num carro de fórmula. Isso é algo novo para mim. Por isso não sei se eu me transformei em inspiração para outras pilotos. Mas nunca tive aspiração de chegar à Fórmula 1.

Ela lembra que esteve perto de iniciar carreira no que é hoje a Nascar americana:

Em 1969, recebi o convite para testar em Daytona. Seria uma experiência de seis semanas com um Stock Car, mas que eu lamento profundamente ter recusado. De uma forma estúpida, eu acabei seguindo algumas advertências de como seria perigoso. Voltando no tempo, acho que eu teria adorado a maneira como as coisas eram feitas sem muito requinte naquela época.

Jennifer Nadin voltou às suas origens após deixar a FVee e colecionou títulos e vitórias em diversas categorias de rali. Sua última disputa foi em Bogotá, na Colômbia, em 1991, ao lado de Davina Galica, “uma piloto enormemente subestimada”. A também inglesa Galica chegou a participar de treinos na F1, no final dos anos 1970, mas nunca conseguiu se classificar para uma prova. Fora das pistas, Nadin participou da direção de várias competições promovidas por empresas como General Motors e Honda.

Mesmo quando parou de correr, a pioneira da FVee inglesa não perdeu o espírito de aventura. E descobriu um novo esporte: o esqui, apresentado a ela pela amiga Galica, que foi esquiadora em quatro Olimpíadas de Inverno. “Até quando pude esquiar, sentia que a sensação de velocidade era muito maior em cima de meus pés.

 

Conselho a jovens pilotos

Hoje, Jennifer Nadin vive entre as duas pacatas cidades no interior da Inglaterra e na Nova Zelândia para evitar o frio. No verão, costuma viajar de carro pela Europa com o marido, mostrando ainda toda a sua habilidade ao volante. Das pistas, ficaram as boas recordações de uma carreira de muitas vitórias. E mesmo diante da mais polêmica delas, ainda aposta no potencial da Fórmula Vee para a formação de novos pilotos e deixa um recado para quem quer começar esta jornada:

“Os jovens pilotos precisam ter muito cuidado ao escolher o caminho a seguir. Devem começar aprendendo os primeiros passos na Fórmula Vee, provavelmente por dois anos. O dinheiro não é tudo, mas o apoio de patrocinadores é fundamental, e eles nem sempre costumam te tratar bem.

Faça a sua lição de casa, pesquise empresas, saiba quem são seus gestores, se têm alguma ligação com o esporte e o automobilismo. Pela minha experiência, o departamento de marketing não costuma ser um bom caminho, pois essa gente está mais interessada em se valorizar e levar todos os créditos e comissões por novos projetos.

Assim, tente chegar diretamente na direção das empresas, produza um material de apresentação de forma humilde, atrativa e profissional. E seja breve, porque diretores ou diretoras não costumam ter muito tempo para você.

Tenha sorte e determinação!”.

  

 

 

 


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